ENGANADOS

NA ESTUFA

TERCEIRA EDIÇÃO 2021 

Contra as falsas soluções
para a mudança climática 

Precificação de Carbono

PRECIFICAÇÃO DE CARBONO 

 

Na última década, sistemas de precificação de carbono surgiram como a estratégia primordial para se lidar com a crise climática. Contudo, as abordagens que dão valor monetário a gases poluentes causadores do efeito estufa obscurecem o fato de que a precificação de carbono permite que a extração de combustíveis fósseis continue sem pausa, sob a falsa suposição de que as forças de mercado impulsionarão reduções expressivas nas emissões. Esta seção esboça os mecanismos chaves de precificação de carbono e demonstra por que são falsas soluções para a crise do clima.  

 

Os fundamentos para políticas globais relacionadas ao clima baseadas no mercado começaram com o Protocolo de Kyoto, de 1997. Este tratado requereu que os países desenvolvidos adotassem compromissos vinculantes para reduzir emissões. Entretanto, ele permitiu que esses compromissos fossem honrados por meio de sistemas de comércio de emissões. Sistemas de cap and trade foram promovidos sob o Protocolo de Kyoto como uma maneira de limitar emissões com um teto (cap) e permitir a empresas comerciar permissões entre elas, sob a regulação de um governo. Num sistema de cap and trade, poluidores e investidores que visem lucrar podem comprar, vender e depositar num banco permissões dadas de graça ou leiloadas pelo governo. Poluidores podem emitir mais que o teto alocado comprando permissões de outros participantes do mercado. Todos os sistemas de cap and trade incluem compensações de carbono. Créditos de compensação de carbono são gerados a partir de projetos que alegam reduzir emissões em outro lugar, fazendo outra coisa. Compensações são compradas por poluidores para justificar mais poluição. 

 

Programas de cap and trade e compensação não reduzem emissões ou o uso de combustíveis fósseis diretamente. Em vez disso, eles permitem às indústrias que continuem poluindo ao pagar por mais permissões ou reduções em outros lugares. Isso resulta em emissões serem reduzidas (se é que são) onde isso é economicamente viável, deixando a poluição persistir em áreas desproporcionalmente habitadas por comunidades pobres e não-brancas. Ademais, os mercados de carbono – sujeitos a ciclos de boom e colapso – têm consistentemente sido fadados a ter preços baixos, o que resulta em incentivos econômicos mínimos para que poluidores reduzam emissões. Cap and trade e compensações reguladas por governos são denominados mercados de compliance, ao passo que mercados voluntários não se enquadram em estruturas regulatórias governamentais, ou seja, não são regulados. Esses mercados são criados por empresas privadas que visam o lucro e organizações conservacionistas para vender créditos de compensação para consumidores, poluidores, companhias aéreas e empresas de grande porte.

Compensações de carbono frequentemente são exploratórias e restringem os direitos e a soberania de Povos Indígenas sobre suas terras, bem como o acesso à terra de comunidades Negras, não-brancas e de baixa renda.1 Compensações de carbono podem incluir grandes projetos hidrelétricos destrutivos, usinas de biomassa, captura de metano de minas, mudanças de combustível ou projetos de eficiência, o assim chamado “manejo florestal,” digestores de metano na pecuária e muitos outros. Compensações florestais e outras baseadas no uso da terra são particularmente problemáticas porque tratam reduções de emissões de combustíveis fósseis como sendo equivalentes a reduções de emissões de práticas de uso da terra, tais como manejo florestal, o que é falso. O entendimento científico é que o carbono fóssil e o carbono da terra são fundamentalmente diferentes e não devem ser tratados da mesma maneira.2 Mais problemas surgem baseados em medidas de contabilidade desviante que de forma nada plausível buscam provar que reduções serão permanentes e não teriam ocorrido na ausência do programa de compensação.3, 4

 

Compensações florestais não significam que a indústria madeireira ou as comunidades param de derrubar árvores. Por exemplo, no sistema cap-and-trade da Califórnia, contratos de 99 anos são comumente assinados para “manejo florestal”, o que apenas significa reduzir o corte de árvores. Além disso, o preço do carbono em si tem permanecido tão baixo que ele não consegue concorrer com commodities com um alto risco de desmatamento embutido, como soja, palmeira, madeira e combustíveis fósseis. Ademais, corretores de carbono do mercado voluntário têm cada vez mais se centrado nas lideranças das nações Indígenas de modo a ganhar acesso a direitos ao carbono em suas terras.  

 

Em 2007, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (sigla em inglês: UNFCCC) e o Banco Mundial lançaram o projeto controverso e colonialista Redução de Emissões provenientes de Desmatamento e Degradação florestal (REDD – Reducing Emissions from Deforestation and forest Degradation). Em 2010, o REDD foi expandido para se tornar REDD+, que pretendia incluir conservação florestal, “manejo sustentável de florestas” e “aumento dos estoques de carbono florestal”. Um típico projeto REDD+ oferece a promessa de incentivos econômicos a uma comunidade no Sul global, frequentemente focando em comunidades indígenas com florestas intactas, em troca de manejo florestal e de vender créditos para poluidores pelo carbono supostamente estocado nas florestas. Tais projetos tendem a ser acompanhados pela alegação de que o desmatamento acontece porque o valor econômico posto em florestas intactas é muito baixo, e que fornecer dinheiro para conservação a países do Sul que têm florestas ajudará a protegê-las e ao mesmo tempo apoiar o desenvolvimento econômico. Esta afirmação tem sido questionada por muitos Povos Indígenas e comunidades de florestas, que alertam que pôr um preço em florestas na verdade tem encorajado mais açambarcamentos de terras por comerciantes de carbono, grandes empresas e governos.5 

 

Na prática, projetos REDD+ tendem a seguir uma estratégia de dividir para conquistar. As comunidades frequentemente se vêem sujeitas a novas restrições com relação a como ganham a vida, novos fardos contábeis, apropriações de terra e criminalização, enquanto o dinheiro prometido em geral não chega e aumentam as tensões e divisões internas na comunidade. Muito poucas comunidades são sequer informadas de que o objetivo do contrato que elas assinaram é fabricar direitos de poluir para indústrias e setores empresariais distantes, negando assim quaisquer esforços na direção de um consentimento. 

 

Projetos que precificam o carbono devem ser reconhecidos pelo que são: extensões injustas e coloniais de um sistema capitalista opressivo, racista e patriarcal

Outra política de mitigação da mudança climática é um imposto sobre o carbono, ou uma taxa imposta aos poluidores por emissões que produzam. Impostos sobre o carbono historicamente não dissuadiram as indústrias de poluírem, já que empresas de grande porte podem facilmente mitigar os custos repassando-os aos consumidores, cortando os salários dos trabalhadores, quebrando sindicatos, praticando elisão fiscal e fazendo lobby por mais subsídios ou imunidade judicial, para mencionar apenas alguns.6 Recentemente, tem havido interesse crescente no assim chamado nested-REDD+, com um imposto sobre o carbono que permite indústrias poluentes a ter um incentivo fiscal para investir em projetos REDD+.7  

 

Sistemas como carbon fee and dividend (“taxa de carbono e dividendo”) ou cap and invest (“limitar e investir”) são esquemas de imposto sobre o carbono que alegam usar os recursos pagos por empresas para fornecer receitas para esforços de mitigação da mudança climática ou reembolsar consumidores de energia. O Canadá e a Suíça usam esses esquemas. Nos Estados Unidos, impostos sobre o carbono tais como esses têm sido empurrados na direção dos pobres e de comunidades não-brancas com promessas de receitas como uma maneira de fazer pressão e obter apoio para um imposto sobre o carbono. Embora atraentes, tais sistemas são mais uma distração da tarefa de abandonar os combustíveis fósseis porque a receita tributária depende da continuidade da poluição e nada faz para impedir a extração na fonte. Enquanto Povos Indígenas lutam contra o fraturamento hidráulico (fracking) e oleodutos, e comunidades Asiáticas, Negras e Latinas enfrentam a asma e outras disparidades de saúde por viver perto de refinarias de petróleo, a taxa de carbono e dividendo cria divisões nos movimentos ambientalistas e de justiça climática. Isso porque o imposto sobre o carbono cria um mecanismo de dependência financeira que conta com mais poluição em troca de pagamentos para certas comunidades ou projetos. Os pagamentos podem ser na forma de “benefícios” que podem financiar empresas privadas ao invés de comunidades e, em última instância, mais falsas soluções.  

 

Por volta de 2013, num esforço para impulsionar os cambaleantes mercados de carbono, a indústria extrativa e organizações de promoção do comércio de carbono começaram a repaginar suas marcas, um processo de rebranding. Na mesma época, governos e empresas combinaram o comércio de carbono, compensações, impostos, REDD+ e outros mecanismos comerciais baseados em conservação sob o termo comum precificação de carbono, com ambições de juntar os vários projetos sendo implementados num marco global. O Acordo de Paris de 2015 consolidou ainda mais esta meta ao esboçar mecanismos para países honrarem seus compromissos de redução de emissões por meio da vinculação entre sistemas regionais de comércio de carbono e outras abordagens de precificação de carbono.    

 

O artigo 6 do Acordo de Paris é o artigo do tratado referente à precificação de carbono. Ele inclui dois mecanismos principais para se comerciar poluição. O Artigo 6.2 se chama Abordagens Cooperativas e permite às partes comerciar diretamente sem usar um mecanismo internacional. O Artigo 6.2 poderia ser usado numa situação em que instrumentos nacionais ou regionais, como o Regime de Comércio de Licenças de Emissão da União Europeia (RCLE-UE), se vinculam a um sistema comparável para criar um mercado de carbono transfronteiriço. Sistemas nacionais e bilaterais baseados em créditos de carbono que operavam fora do escopo da UNFCCC também poderiam ser usados sob a égide do Artigo 6.2. Por exemplo, atividades de mitigação da mudança climática podem ser implementadas num país e a redução de emissões pode ser transferida para outro país por meio de contabilidade de carbono com um assim chamado Resultado de Mitigação Internacionalmente Transferido (ITMO – Internationally Transferred Mitigation Outcome). O ITMO é então contabilizado com vistas à meta de redução de emissões chamada de Contribuição NacionalmenteDeterminada (NDC – Nationally Determined Contribution) de um país. Tais reduções incluiriam a maior parte das falsas soluções discutidas aqui no Enganados na Estufa. 

 

Historicamente, o maior mecanismo global de compensação de carbono é o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (CDM – Clean Development Mechanism) criado por meio do Protocolo de Kyoto. No artigo 6.4, o CDM é preparado para conversão em Mecanismo de Desenvolvimento Sustentável (SDM – Sustainable Development Mechanism) no Acordo de Paris. Compensações novamente contariam para as NDCs de uma Parte. Restam dúvidas sobre o que acontecerá com os créditos CDM atuais, como o SDM funcionará e quem poderá se candidatar. Parece claro que o big business está convidado, por meio da “oferta de incentivos adequados” ao setor privado.8 

 

Por último, o Artigo 6.8 é calcado em abordagens não baseadas no mercado. Esta seção pode incluir esforços de conservação questionáveis como os Pagamentos por Serviços Ambientais (PES – Payments for Environmental Services), que trocam um ecossistema precioso por um projeto de “conservação” em outro lugar. Projetos PES frequentemente dão suporte à expansão de indústrias de combustíveis fósseis quando elas são obrigadas pelo Estado a implementar projetos sociais ou ecológicos por meio de uma LSO (Licença Social para Operar) ou requisitos de licenciamento ambiental. Nestes casos, toda uma região pode ser destruída pelo extrativismo em nome do desenvolvimento, desde que seja implementado algum projeto em outro lugar (ver Soluções Baseadas na Natureza). 

 

Com a arquitetura do comércio de emissões no Acordo de Paris ainda sendo negociada, o mundo assistiu aos mercados voluntários superarem pela primeira vez os mercados regulados (compliance markets) no final de 2019. Abundaram empresas de grande porte alegando que os mercados voluntários não regulados e em rápida expansão trariam a neutralidade de carbono. Das grandes companhias aéreas à Microsoft, TC Energy e Amazon, compensações florestais, compensações baseadas no uso da terra e todas as outras iterações da precificação de carbono decolaram ruma a uma nova fronteira. Hoje, termos dúbios e enganosos incluindo meta de emissão líquida zero, carbono neutro, carbono positivo, carbono negativo, soluções baseadas na natureza (SBN) e captura de carbono ocupam igualmente o jargão empresarial e de formulação de políticas (ver Soluções Baseadas na Natureza e Captura de Carbono). Emissão líquida zero, embora pareça implicar um estado de não produção de emissões de carbono, simplesmente significa que uma empresa, governo ou outra entidade pode subtrair seu total de emissões existentes numa planilha até chegar a “zero” com alguns toques num teclado e algumas compensações de carbono. Mas as emissões continuam a existir. 

 

Perigosamente, há um movimento recente não só para monetizar o carbono como nova mercadoria de serviço ambiental, mas também para colocar a natureza no mesmo plano que a tecnologia. Assim, a nova onda de geoengenharia climática foca em “remoção de dióxido de carbono”, abarcando tecnologias não comprovadas como captura direta do ar captura e armazenamento/sequestro de carbono (ver Geoengenharia e Captura de Carbono). Para alcançar metas de emissão líquida zero, além da captura de carbono, o foco na remoção de carbono se estende às assim chamadas SBN, que se tornaram a nova terminologia para o carbono do setor da terra. Estão surgindo novos mecanismos de comércio de emissões que forneceriam uma plataforma para a comercialização das já tradicionais compensações florestais e estenderiam as compensações de carbono do setor da terra para incluir solos, agricultura e gás de fazendas industriais (ver Soluções Baseadas na Natureza).  

    

Enquanto os propositores da precificação de carbono deixam de lidar com as emissões que se acumulam e com os ecossistemas impactados, o novo foco na remoção de carbono e nas SBN é combinado com a continuação das tradicionais porém ainda muito populares compensações de base florestal. Nesse sentido, quanto mais as coisas mudam, mais elas ficam iguais, expondo como a remoção de carbono, as “soluções naturais para o clima”, a emissão líquida zero e as SBN se baseiam na mesma subjacente distração da questão do extrativismo. Com governos, empresas e ONGs buscando desenvolver um mercado global de carbono por meio da vinculação de mercados nacionais e subnacionais no Artigo 6, os esquemas de precificação de carbono devem ser reconhecidos pelo que são: extensões injustas e coloniais de um sistema capitalista opressivo, racista e patriarcal, feitas para preservar o status quo, justificar o roubo de terras e manter combustíveis fósseis saindo do chão e madeira saindo das florestas com o propósito de engordar os bolsos da elite global. 

Indigenous Environmental Network: ienearth.org, co2colonialism.org

REDD-Monitor: redd-monitor.org